Hoje faz um ano!
Botei meu coração na estrada e com
minha filha e alguns amigos voltamos ao local, onde muitas vidas foram tocadas...
Literalmente.
Se algum de vocês encontrarem Vitória diga que mandei lembrança. Ela é filha
de Ana Cristina, tem um irmão de 10 anos que se chama Jefferson e que lamentava
ter perdido todos os seus brinquedos. Além de Jefferson ela tem mais três irmãos que não consigo me lembrar seus
nomes.
Oh menina desobidiente!!!
...Ela dizia de forma banguela e
soletrada, enquanto acenava com a mão direita, chamando-me debaixo da
arvorezinha.
Ana Cristina parecia uma flor que chora.
Após sair da igreja, não encontrou lugar no abrigo e fez da
arvorezinha seu novo lar. “Uma moça compadecida, de nome Beatriz, nos deu
essa cabaninha”, apontava para a barraca de camping.
Ana tinha cinco crianças, um marido desanimado e um desejo
gritante: conseguir notícia da filha mais velha que estava internada desde o
dia da desocupação, em 22 de janeiro de 2012; ela não sabia em qual Hospital.
Sentei-me no chão, ao seu lado. Ela segurava seu menininho no colo
enquanto eu começava a ligar para as colegas assistentes sociais. Hospital 1,
2, 3. A filha estava no Municipal. Clínica I, quarto 103. Sem previsão de alta,
quadro de saúde estável, visita das 11h as 21h.
Levantou-se com a notícia, deitou o filho numa manta sem cor e,
soluçosa, me apertou num abraço. Depois, voltou a apontar a desobediência
da filha do meio, que andava rejeitando almoço e, sem chinelos, seguia
brincando de pisar nas poças d’água que escorriam finas, deixando o entorno
mais enlameado.
Entreguei-lhe dois “vale transporte” para que visitasse a filha no
hospital e dois pares de chinelos para as crianças. Despedi-me da
família. Deixei um cartão com o número do meu telefone se
precisassem. “Preciso não senhora. Preciso de mais nada. Deus te proteja
de toda maldade. Que nenhuma janela se feche pra ti”. Ana me recomendava aos
seus santos adormecidos e eu voltei para casa desejando um fortíssimo e
sonífero licor de papoulas.
Dois dias depois, o telefone tocou no meio da manhã. Era a Vanda
Siqueira, queria saber se eu iria ao abrigo e fazia-me um pedido de alma,
dessas almas que assemelham-se ao infinito.
“Zê, preciso muito que você entregue um kit escolar para uma
garotinha chamada Vitória”.
Vanda, onde fica a Vitória? Perguntei cautelosa; em meio a
200 famílias abrigadas deve haver uma dezena de Vitórias. Ela não sabia onde
ficava a menininha nem quem era sua família. Conheceu a criatura numa
visita de domingo. Encostada no alambrado sozinha, pedindo um caderno e uma
caixa de lápis de cor. As aulas começariam na próxima segunda e todo o material
escolar comprado pelo pai ficara na casa que foi derrubada.
Impregnei-me com a imagem. Precisava atender aquele pedido e, no
meio da tarde, cheguei no abrigo com várias sacolas, caixas e um kit escolar
bem recomendado. Pedi ajuda de conhecidos.
Juliana gritou com elevada altura das escadarias, três vezes:
- “Tem alguma Vitória por aqui”?
Apareceram diversas; no colo do pai, da mãe, da irmã, do padrasto,
vizinha… mas nenhuma tinha idade escolar.
Agradeci à Juliana; com a esperança amarelada, guardei o kit no
carro e resolvi descer ao encontro da Ana, a fim de saber se havia conseguido
visitar a filha. Atravessei a quadra, passei pelos guardas, cheguei no
brejinho, ao lado da árvore, onde os capinzinhos molhados pinicavam o sossego das
poucas florzinhas azuis que abraçavam a cerca.
Ana não estava. Somente as crianças e a filha que, agora com os
pezinhos calçados, não brincava de chapear as poças d’água; espiava do
alambrado os passantes. Veio dócil atender-me. Contou que a mãe “tinha ido
buscar umas coisas que a madrinha deu”.
Perguntei se queria conversar, disse-me que não. Estava muito
ocupada. Esperava uma moça de cabelos curtos e bonita que um dia lhe prometeu
um caderno e esqueceu de voltar.
“Soubesse tinha pedido para você o caderno, invés de chinelo” –
lamentava – “depois de amanhã bem cedinho minhas aulas vão começar”- falava
baixo sem tirar os olhos da estrada.
Perguntei o seu nome e ela respondeu-me com outra pergunta:
“Vitória. Você vai me ajudar”?
Vitória? Você se chama Vitória? Refiz a pergunta hasteando uma
alegria desconhecida! Foi a resposta mais afirmativa que ganhei.
Sim, nunca mais vou saber a hora de preparar meu coração, pensei
num estalo.
Encarei aquele olharzinho demasiadamente sincero, segurei suas mãos pequeninas
e mal lavadas… – não deixei que ela visse meus olhos e a levei até o carro –
emoldurando as ocorrências, entreguei-lhe a sacola com tudo guardado e
cheirando a novo.
Seguimos abraçadas de volta até o pé da amoreira onde a família se
acomodava.
O sol encaminhava-se sonolento para se pôr e nós estávamos ali: Deus e seus
anjos, eu, Vitória, Beatriz e Vanda. Minha escuridão sertaneja já não era
tão aguda.
Fiquei alguns segundos olhando aquela menininha em êxtase com suas
“coisas de escola” enquanto os irmãos seguiam risonhos, com dois pneus velhos
molhados, brincando de soldados.
E foi assim que aquela mocinha tão única e tão simples me cativou.
Sou uma raposa chorona e lucro por causa da cor da amora; ela vai sempre me
trazer a lembrança dos olhos da Vitória.
Ana Cristina alugou uma casa e conforme disse – “não
precisava de mais nada”- , nunca me ligou.