quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

sábado, 4 de dezembro de 2010




Meu pai agreste se foi bem cedo. Cativo do álcool abriu todas as torneiras do desafeto e nos deixou numa véspera de domingo dia de Nossa Senhora da Conceição. Meu pai católico, provedor de versos curtos, soltador de fogos de artifícios e pescador de primeira. Tinha voz terna e um cheiro diferente que eu infante desconhecia a procedência. Quando mais tarde dando falta de ternura e da sua mão que nunca mais tocara a minha, entendi a rudeza da sua fala e passei a detestar aquele cheiro com a maior força que a verdade pode guardar.
Meu pai abortou as nossas passagens mais engraçadas. Proibiu flores e cantigas. Ficou sovina. Suspendeu sentimentos essenciais e por muitas vezes fez de sua presença um incômodo.
Estendíamos a fita de cor para refazer os laços que a bebida havia esgarçado, ele anoitecia e nunca aceitava. Fortalecendo na gente aquela dor amargosa e deselegante.
Não chorei a morte do meu pai. Suas escolhas renegaram minhas lágrimas, amor e fonte de ajuda. Após deixar seu corpo na lápide 2 do cemitério São Miguel voltei para casa descoberta e forte.
Guardei seus chinelos e o lençol que cheirava cigarros. A rede de pesca, arreios e sela, atras da porta, adornavam silenciosamente aquela tarde única e grossa.
Minha memória revirava a casa e não encontrava uma sombra tênue de carícia paterna. A ponta de afeto mais fina que fosse propiciar uma saudade futura. Meus quatro irmãos e minha mãe choravam quando os abracei e saí indecifrável.
Hoje entendo que tudo aquilo foi um aprendizado necessário para fortalecer minhas intenções. O quanto a literatura foi importante para mim naqueles tempos espinhosos de aconchego falho, liberdade negada, falta de despedida e bênçãos. Tudo aquilo promoveu em mim o desejo sóbrio de cuidar dos que me cercam. Percebi a família como base detentora de valores que regem nossa vida e história.
Pobre meu pai, sem convenção espiritual ou intelectual perdeu-se nas teias venosas da caminhada etílica. Ouvindo Chico Buarque numa dessas manhãs de domingo, lembrei-me dos olhos claros que meu pai tinha e desprovida de dor chorei sozinha.

"Depois de te perder
te encontro com certeza
talvez num tempo de delicadeza
onde não diremos nada
nada aconteceu
apenas seguirei como encantada, ao lado teu"...

Zenilda Lua