quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

domingo, 19 de fevereiro de 2012


Foi numa tarde sem cura, minha porção materna levantou-se da zona de conforto e adentrou naquele espaço que, mais parecia uma perturbação esquizofrênica de longo alcance e altura.

O dia anterior tinha sido de expulsões, estampidos de bombas, prisões, barulho de helicóptero, longos telefonemas, dor e muitas lágrimas partilhadas com amigos, em especial Paulo Barja.

Era 23 de Janeiro, o ano mal havia começado e, estávamos ali, eu e minha filha, buscando uma resposta, um alento por mais tênue que fosse para abafar tanta agrura.

Em aguda situação o silêncio é balsâmico. Mas aquele não era. Era infinitamente doedor.

Voltamos para casa. Eu estava disposta a enfrentar pelas crianças e idosos, os mais danosos cães. Recorri ao ECA, artigo cinco explicitava: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, descriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei, qualquer atentado por ação ou omissão aos seus direitos fundamentais.”

Meu Deus! Todos os direitos foram violados e continuavam sendo, ali perante nossos olhos mornos!

Maldisse os governantes, os líderes, a ignorância, os assuntos de Leis.

Não calculei o preço mas, quando percebi que seria incapaz de conseguir sozinha, rebusquei amigos, reparti o leme e o barco seguiu repleto pela autenticidade dos atalhos.

Logo a garagem de casa encheu-se de caixas e sacolas. Biscoitos, meias, moletons, lençóis, camisetas, panetones, bíblias, carrinhos, gibis, prendedor de cabelo, fraldas, garrafas de café, porta-sabonete, chinelos, remédio pra piolho, analgésico, pirulito e itens relevantes de utilidades diversas.

Em duas semanas virei carreteira, madrinha, irmã de solidão e afeto, conselheira, ouvidora, portadora de recados e pedidos, entregadora de lanche da tarde, acompanhante de enfermarias.

Até que os meandros racionais inflamaram-se na sala de estar. Meu par apontou-me que, a razão é um sol impiedoso; ela ilumina, mas, também cega.

Foi decretado insatisfação pelos meus atos e opção. Vislumbrou-se a concepção que eu estava agindo de forma ridícula e atavicamente assistencialista.

Restaram-me os soluços, o abraço da filha e as centenas de pedidos guardados na bolsa.

Uma semana passou e, consumida pelo ardor da impotência, reativei minha subjetividade, minhas referências e princípios, o lugar mais íntimo onde o meu “eu” sobrevive.

Convenci o amor que minhas ações eram carregadas de histórias, razões e motivos, que minha opção tinha um caráter sacral. Pois minha alma também fora feita a machado e, talhada na pedra bruta. Carecia dessa possibilidade, de estar com o meu próximo segregado invisível e sem futuro próspero. Somente assim não corria o risco de ser sequestrada, de me perder do cordão que me costura a mim mesma.

No dia seguinte voltei a encontrar Clarinha, Seu Pedro, Vitória, Sara, Ana Cristina, Pedro Augusto, Seu Antônio, Alaíde e Dinorah e tantos outros que me ensinaram e ainda ensinam; “o tamanho da flor não modifica a sua condição essencial. A flor será sempre uma flor, mesmo que pequena”.

Continuamos indo, eu e minha filha, aos abrigos onde seguem alojados dezenas de ex-Pinheirinhos.

Muitos receberam o aluguel social e conseguiu alugar uma casa, outros a Defensoria Publica precisou intervir. Alguns buscaram o quintal de parentes, compadres, amigos. Alguns conseguiram empregos, outros estão à procura. Alguns ficaram doentes, outros foram embora para a terra de origem. As crianças estão frequentando as escolas. Uns sorriem outros permanecem quietos. Uns pedem chicletes, outros chinelos e, assim prosseguem suportando a aflição da existência.

Não deixarei de ir vê-los, pois o que não é percebido não existe. Ou seja; o que não for notado e distinguido, perde a efetividade.

zenilda lua